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domingo, 14 de fevereiro de 2010

A poesia precisa de mais liberdade para ser o que é

Este artigo é a adaptação de uma das respostas que Ana deu às tarefas do curso de Poemas, quando se preparava para o trabalho de mediação. Foi uma maneira que encontramos de deixar registrado aqui um pouco do que ela tinha a nos ensinar.
professora Ana Maria Roriz.

Há textos e coisas que são funcionais, ou seja, têm uma função social definida: você lê um manual, uma bula ou uma receita para se orientar; você lê uma notícia para se informar; lê um artigo para conhecer a opinião de outra pessoa sobre um assunto de seu interesse e para formar a sua própria; lê um contrato para conhecer os aspectos legais de uma transação qualquer. Da mesma forma, você compra uma garrafa térmica, uma cadeira, um sapato ou um alimento com objetivos muito específicos.
Há outros textos que não são funcionais: os literários estão entre eles. Você não precisa ler textos literários para aprender, para se orientar ou para se informar. Você pode passar a sua vida inteira sem ler qualquer texto literário e ainda assim ser uma boa profissional (pense num engenheiro, por exemplo), uma boa amiga, uma boa filha. O mesmo ocorre com a arte em geral: você também pode passar a sua vida inteira sem adquirir ou apreciar um objeto de arte, como um quadro ou uma estatueta.
Entretanto, a arte - e o texto literário especificamente - tem um outro tipo de função: uma função humanizadora. Como diz Antônio Cândido, a literatura "confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua no subconsciente e no inconsciente."
Segundo o autor, a humanização é um processo que confirma no homem aqueles traços que julgamos essenciais: "o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor". Ao consumir literatura, tornamo-nos mais compreensivos, mais sensíveis; abrimo-nos para o mundo, para a natureza, para os nossos semelhantes.
Certa vez, assistindo durante as férias ao programa Vídeo Show, na TV Globo, vi uma reportagem em que apareciam as atrizes Ana Paula Arósio e Cláudia Raia observando a gravação de uma cena, nos bastidores do estúdio. Na cena, uma mulher segurava um bebê, embalando-o enquanto andava de um lado para o outro. Nesse momento, o bebê morria. A reportagem mostrou as duas atrizes aos prantos! É claro que elas sabiam que aquilo era uma gravação, mas, ainda assim, emocionaram-se a ponto de chorar! O choro foi causado pela capacidade e pela sensibilidade de elas se colocarem no lugar do outro e repartir com ele a sua dor. Mesmo que nenhuma das duas tenha vivido a dor de perder um filho, um amigo ou um parente pequeno, o ser humano é capaz de se transportar para o lugar do outro e sentir o que ele sente. Assim faz conosco o texto literário. Ao lê-lo, somos tocados em nossa sensibilidade. Por meio dele, rimos, choramos, torcemos, decepcionamo-nos, indignamo-nos. Vivemos situações "na pele do outro", do personagem; aprendemos a nos colocar no lugar do outro e a sentir as mesmas emoções que ele sente. A partir do texto literário, podemos refletir sobre ideias, situações, pontos de vista, posturas, ações, sem falar de ninguém especificamente, mas do ser humano no geral, usando a nossa forma única de ler, de compreender, de pensar. Podemos aprender outras formas de ver o mundo e as coisas do mundo e, assim, nos tornarmos mais tolerantes, mais flexíveis, menos "duros" em nossos julgamentos e em nossas ações.
Já reparou quantas vezes, ao vermos um filme, um capítulo de novela, ou ao lermos um livro ou um texto, pensamos: esse personagem é igual / age igual / pensa igual ao fulano ou ao beltrano? A literatura é o olhar do escritor sobre a realidade. É uma interpretação. É a realidade filtrada pela sensibilidade do autor. Por isso é inovadora, por isso revoluciona, por isso nos convida a renovar nossos conceitos, nossa maneira de pensar e de agir. Por isso tem função humanizadora!
Os poemas devem ser ensinados porque, como textos literários que são, ajudam a humanizar os nossos alunos. E, pensando bem, precisamos demais de humanizar as pessoas, não é mesmo? E também porque as crianças e os poemas têm tudo a ver! Em ambos abundam a fantasia, a sensibilidade, a capacidade de criar imagens, de usar as palavras sem censura, criando significados surpreendentes para elas, mostrando um lado da realidade que não havíamos percebido, apesar da experiência. Quando conversamos com uma criança, ela nos revela um olhar sempre renovado para o mundo:
Língua de criança é a imagem
da língua primitiva.
Na criança fala o índio, a árvore, o vento.
Os nomes são desnomes.
(Poeminhas pescados numa fala de João - Manoel de Barros).
No suplemento Folhinha, do jornal Folha de São.Paulo do dia 12 de maio de 2007, foi publicada uma reportagem cujo título é "Conversas para colecionar". Veja algumas falas de crianças que aparecem na reportagem:
Casal rosa
Outro dia, a mãe comentava com a filha, Alice, uma história ocorrida entre uma colega e a namorada dela. A Alice estranhou:
- Ué, namorada? Ela não é menina?
A mãe explicou:
- É, mas tem meninas que preferem namorar outras meninas. A Elisa namora a Mirna.
A menina pensou um pouquinho e decretou:
- Tem uma vantagem, né, mãe, de namorar outra menina...
- Qual?
- Elas podem pintar a casa toda de rosa!
(Conversa com Alice Sampaio Vitral, 6, e Juliana Sampaio, 36, há uns seis meses)
O carro enguiçou
A mãe ajudava o filho a se enxugar depois do banho, e ele o tempo todo fazia com a boca um barulhinho assim: "Brrrrrummm, brrrrummm, brrrrummm".
E, quando a mãe passou a toalha na boca do menino, ele reclamou: "Ah, mãe, você quebrou o meu carrinho!"
(Conversa entre José Carlos Silva Telles de Mello Junior, 14, e Marilia Tresca, 47, quando o menino tinha cinco anos)
Na época do preto-e-branco
Certa vez, a mãe contava aos filhos como eram as coisas em seu tempo. Ela explicou que, naquela época, não havia celulares, computadores, impressoras, máquinas fotográficas e televisões coloridas. Escutando tudo muito atento, um dos filhos questionou, meio chocado, se a TV e a fotografia eram em preto-e-branco mesmo. Quando a mãe confirmou, ele perguntou:
- Mas como é que eles conseguiam tirar a cor das coisas, mãe?
(Conversa entre Kauê Cruz Preto, 15, e Leda Cruz, 46, quando o menino tinha quatro anos)
A França fica no céu?
A avó de Marc mora na França, mas ele ainda não esteve lá. Na possibilidade de uma viagem até a casa da avó, o menino perguntou:
- Mamãe, a mamie Agnès [a avó" mora no céu?
- Claro que não, Marc. Ela mora na França.
- E a França fica no céu?
- Não!
- Então por que precisamos ir de avião?
(Conversa entre Marc Adrien Pinel, 4, e Kathia Gloria, 41, no ano passado)
Leia agora esse poema, de Léo Cunha (Poemas Avoados):
SAUDADE
eu pensava que à noite
o sol ia dormir
que o sol ia pra casa
que ia lá pra China
que o sol virava lua
que acabava a pilha
que punha capa preta
que a montanha engolia
que o sol também ficava
com saudade de mim.
E ainda esse, de Manoel de Barros (O Fazedor de Amanhecer):
ERAS
Antes a gente falava: faz de conta que
esse sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu
E o menino eras um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim:
Encostado na Porta da Tarde estava um
caramujo.
Estavas um caramujo - disse o menino.
Porque a Tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
Então é tudo faz de conta como antes?
Percebeu a semelhança entre os textos? Observou a liberdade de pensamento, a imensa extensão do olhar das crianças e dos poetas? Percebeu que eles olham a mesma realidade que nós, mas enxergam coisas que não enxergamos, que renovam e inovam o mundo com o seu olhar?
Na verdade, acho que a poesia não é mais explorada nas escolas porque os professores se sentem inseguros diante de um texto para o qual não há uma interpretação única. O que Manoel de Barros quis dizer com esse poema "maluco"? As crianças especulam, espiam, escarafuncham o texto por dentro, por fora, pela frente, por trás, debaixo, em cima, com grande naturalidade. Descobrem sentidos escondidos, propõem sentidos que não haviam sido cogitados, não se preocupando se ele é um ou são muitos. O professor teme não ter "a" resposta certa, segura, precisa.
Poesia não é para ser compreendida pelas vias da razão, mas da sensibilidade, da intuição. Exige um leitor que se permita mais sentir do que entender. Uma das principais características do fenômeno poético é exatamente a ambigüidade, a conotação, a amplitude de sentidos. Já deve ter acontecido com você de ouvir uma música, adorá-la, mas não saber dizer, de forma denotativa, o que você entende da letra dela. E nem por isso ela deixa de emocionar!
Outra questão importante ao lidar com a poesia é que ela não deve ser trabalhada associada a outras disciplinas, para ensinar conteúdos ou passar conceitos morais. Poesia não é texto didático, nem filosófico, nem religioso. Ela pode até dialogar com esses contextos, mas precisa de mais liberdade para ser o que é.

Fonte Boletim nº55 Comunidade Escrevendo o Futuro

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