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sábado, 20 de fevereiro de 2010

O segredo da Olimpíada é que ela nasce na sala de aula

A coordenadora pedagógica da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro falou das novidades para a edição de 2010. Retomando a história do projeto, destacou a importância do contato permanente com as experiências do professor em sala de aula, aspecto fundamental para o aperfeiçoamento dos métodos e materiais usados na Olimpíada.

Uma das características do Escrevendo o Futuro é que o projeto está sempre se renovando e se auto-avaliando, como se isso fosse parte do próprio projeto. Como você avalia a evolução do projeto até virar a Olimpíada em parceria com o MEC?
É interessante ver que é um programa que cresceu, já são 8 anos de trabalho, e que foi se atualizando. A primeira ideia era ser um concurso de textos que se transformasse num mobilizador para um programa de formação. Durante esses anos fomos construindo alternativas para alcançar um grande público e ter escala. Com isso nós desenvolvemos uma escrita dos cadernos de orientação que são as seqüências didáticas e a proposta das oficinas de formação. E nós sempre observávamos tanto as práticas de sala de aula quanto analisávamos os textos das crianças, já que visitávamos as escolas que aplicavam o projeto. E a partir dessas referências era reescrito o caderno de orientações da edição seguinte. Por exemplo, lembro que na primeira edição, quando líamos os textos de artigos de opinião, eles não traziam questão polêmica, eram simplesmente textos de queixas. Percebemos que precisávamos trabalhar o que era uma questão polêmica. Assim nasceu a revista Na Ponta do Lápis, porque percebíamos o seguinte: o caderno de orientação é uma dose alopática, ensina de uma vez e mobiliza o professor. Passado o tempo da Olimpíada, ele não mantém essa chama acesa e o desejo de continuar. A nossa intenção ao enviar a revista é a de ir alimentando homeopaticamente o trabalho do professor. Num primeiro momento o professor se enche de fôlego e faz as oficinas, percebe o resultado nos textos e verifica que os alunos estão mais envolvidos. O nosso objetivo é de que um dia ele incorpore isso como metodologia de trabalho de Língua Portuguesa. Fomos encontrando formas alternativas de alcançar, em grande escala, e manter o assunto em pauta. Por isso criamos a revista com questões teóricas, entrevistas com pessoas importantes, relato de prática de professores, análise de textos de alunos. Foi uma forma que encontramos de alimentar continuamente. Uma outra coisa é que fomos fabricando vídeos e programas em conjunto com o Canal Futura; depois nasceu a Comunidade Virtual, na Internet, e os cursos por meio dessa comunidade. Hoje temos uma rede e um acervo. E o nosso caminho é sempre trilhado tentando construir uma tecnologia para trabalhar em escala. É assim que atingimos uma grande massa de professores. É como escrever cada vez de forma mais acessível, sem abrir mão da profundidade dos conceitos, mas escrevendo e apresentando o trabalho de uma forma cada vez mais palatável e entendida por um grande público. Acho que foi essa a evolução. Quando o MEC convidou o Escrevendo o Futuro – e isso foi uma grande alegria, um enorme reconhecimento – nós já estávamos trilhando esse caminho de buscar alternativas para atingir grandes massas de professores.
É curiosa essa capacidade do programa, e agora da Olimpíada, de criar uma estrutura de formação de qualidade, capaz de mobilizar um número gigantesco de professores. Há algum segredo para pensar nessa capacidade de formação de tanta gente por intermédio desses mecanismos que foram criados?
Tem uma coisa que não é um segredo, mas uma linha editorial do Cenpec, desde que foi criado, que é escrever materiais que tenham profundidade conceitual, mas ditos de uma maneira mais simples possível. Desde o “Raízes e Asas”, que é o grande projeto que inaugura esse alcance do Cenpec, já se procurava uma linguagem que chegasse a professores das mais variadas formações. Portanto, já tínhamos isso. Outra coisa é estar muito conectado com o professor por meio das pesquisas que a gente faz e das visitas às salas de aula. Todos os anos acompanhamos salas de aula no Brasil inteiro, conversando com os professores, analisando os textos dos alunos, as atividades e as oficinas que fazem e que dão bons resultados, e aquelas que eles não fazem, tentando esmiuçar as oficinas que eles têm dificuldades. Por exemplo, a reescrita de texto é uma coisa muito difícil de ser feita. Então nós tentávamos ver um bom professor trabalhando, transcrever e trazer para a escrita das orientações esse modo de fazer dos professores. O segredo desse trabalho é que ele nasce no seio da sala de aula. Ele tem um braço na Escola de Genebra e nas produções acadêmicas mais atuais sobre o ensino da Língua Portuguesa, e outro braço na sala de aula, no modo de fazer dos professores, nas práticas culturais que já estão enraizadas.
Uma experiência recente, realizada apenas com professores de alunos finalistas da Olimpíada, foi a Caixa de Ferramentas, material que propunha ao professor criar sua própria seqüência didática, registrando as atividades e experiências em sala. Como foi isso?
O material dos cadernos de orientação tem uma grande diretividade. Embora deixe espaço para a criação do professor - porque quem desenvolve o projeto em sala de aula é o professor -, ele é bastante diretivo. Ele diz o que o professor deve fazer, dando o passo-a-passo. E nós queremos conquistar uma forma em que estejamos colaborando com o professor, mas fazendo com que ele consiga cada vez mais se desvencilhar dessas orientações e construir sua autonomia. Então, a Caixa de Ferramentas foi uma forma de dizer o que era o gênero, de destrinchá-lo tanto nos seus aspectos próprios quanto na situação de comunicação. A ideia da Caixa de Ferramentas é que ela fosse como andaimes para o professor ir pensando e refletindo sobre sua prática. Porque quando o professor escreve, o exercício da escrita é o exercício de consciência, ao escrever eu vou tomando consciência de como é que eu fiz, vou me dando conta, vou me analisando. O professor deixa de ser só intuitivo e passa a ser um professor operatório, que faz e que sabe por que faz. Um professor intuitivo faz e por vezes consegue bons resultados, mas talvez não consiga repetir a própria prática ou dar visibilidade para a própria prática porque não sabe muito bem por que fez ou como fez. A Caixa de Ferramentas pretendia trazer uma situação de reflexão para o professor pensar. Por que fiz? Como fiz? As perguntas que ajudavam na reflexão da prática induziam a isso. E a ideia era que o resultado dessa Caixa de Ferramentas alimentasse a elaboração dos novos cadernos.
[Obs. A Caixa de Ferramentas foi um projeto desenvolvido em 2009 com professores de alunos finalistas na Olimpíada de 2008. Eles receberam materiais com orientações e textos sobre os gêneros crônica e reportagem. Os professores tinham que desenvolver uma seqüência didática trabalhando esses gêneros com seus alunos, registrando todo o processo e enviando os registros à equipe da Olimpíada.]
Isso fez do professor um parceiro?
Foi para ele ser co-autor. Mas, de certa forma, isso ainda não se consolidou como nós pretendíamos. Mas essa é a nossa intenção para o futuro da Olimpíada. É para que cada vez mais a gente tenha parceiros e que isto seja uma construção coletiva e que todos se sintam participantes desse grande projeto.
E quais são as grandes novidades para a Olimpíada em 2010?
Uma delas é o material. Primeiro tínhamos três gêneros e agora temos quatro. Introduzimos o gênero crônica. A outra é que nós temos alguns dos gêneros trabalhados mais nas situações de comunicação. Antes eram trabalhados mais nos aspectos próprios dos gêneros, tinham uma forma mais estrutural. Hoje nós nos preocupamos com um texto que também trabalhe com a função para a qual ele foi escrito. Isso é mais importante do que todo o resto. Nós refizemos os critérios de avaliação dos textos dando um peso importante para a autoria. Como é que eu percebo a autoria de um texto? Tentando fugir dos “clichês” e desses textos que ficam esvaziados de sentido, que são textos puramente escolares e didatizados. A orientação vai nesse sentido.
E o professor vai entender esse recado?
Vamos ver. Na primeira vez que a pessoa faz, ela não entende. Além dessa pesquisa de olhar para a sala de aula, nós temos pesquisas de grandes empresas, externas, encomendadas pela Fundação Itaú Social. Percebemos que um professor que participa dois ou três anos seguidos, tem uma compreensão melhor do processo. Não é, portanto, na primeira vez que eu faço. Não basta fazer uma seqüência didática para ter aprendido. É na repetição desse processo que eu vou percebendo o que permanece inalterado nisso que varia. Tem variações e tem coisas que permanecem inalteradas. E é isso que a gente quer, pois é daí que vai nascer a generalização para dizer “que jeito seria bom que eu fizesse? ”. Essa é a intenção.
E em 2010 todas as escolas brasileiras vão receber esse material?
Sim, todas as escolas brasileiras vão receber esse material. E outra coisa é que o material vem acompanhado de exemplares de coletâneas de textos, porque no material temos textos modelares. Achamos que só se escreve num gênero se for possível ler e analisar textos deste mesmo gênero. Antigamente procurávamos que esses modelos fossem muito semelhantes entre si. Às vezes, quando não encontrávamos textos assim, encomendávamos, porque estávamos muito preocupados em fixar um modelo. Ao observar os textos dos alunos, nós percebemos que ficavam muito semelhantes. Como se usassem uma receita. Virava comida industrializada. Não se sobressaía o sujeito por trás desse texto: ‘quem é que está dizendo isso?’. Agora, o que fizemos foi usar textos do gênero, mas procurando modelos diferentes do mesmo gênero. Queremos mostrar mais qual é o objetivo do texto e sua função, do que o aspecto e a sua estrutura. Mostrar que o objetivo não está propriamente na estrutura. Nós analisamos textos em que se vêem todos os encadeadores propostos, mas o texto não tem recheio. Com esta coletânea nós possibilitamos que os alunos leiam os textos sem que o professor precise digitar, imprimir, xerocar ou até copiar na lousa. Se for copiar um texto na lousa, vai se acabar com a aula. É um material para ser distribuído para os alunos, em grupos, para facilitar a leitura. E esse material vem acompanhado de um CD multimídia, onde estão os textos em várias formas. Os textos estão sonorizados, lidos por atores, porque é muito mais fácil escutar um texto do que ler. E não só pela facilidade, mas por ser uma boa porta de entrada. Há uma compreensão mais fácil que ajuda a leitura do texto e aproxima o aluno do texto. No mesmo CD é possível projetar o texto e fazer marcações por meio de um data-show ou um computador. Também é possível imprimir, se desejar. São alguns recursos que ajudam o professor em sua aula.
Nesta edição as inscrições para a Olimpíada ocorrerão apenas pela internet. Por que essa opção?
Em 2008 nós recebemos 90% das inscrições via Internet. E pensamos: por que derrubar mais um pedaço da floresta amazônica, espalhando pelo Brasil todo fichas de inscrição, se nós já temos esse grande alcance pela Internet? Todos os municípios receberam lap-tops, têm condições de se conectar. Então não teremos problema. A Undime e o Consed, nossos parceiros, se comprometeram com essa decisão e vão ajudar os municípios a se inscreverem via Internet.
E quais foram as mudanças na formação das comissões julgadoras?
Tem várias mudanças. Primeiro que nós temos trabalhado há bastante tempo com o pessoal das universidades e com nossos parceiros da Undime e do Consed. Mas desde o ano passado nós consolidamos uma rede de ancoragem. São 81 pessoas, três de cada Estado, sendo 27 representantes das secretarias municipais, outros 27 das estaduais e mais 27 de universidades públicas. Essas pessoas compõem um grupo em cada Estado e vão coordenar o processo de seleção de textos. Além disso, esses textos serão digitalizados e enviados via internet. A folha oficial para o envio de texto vai com um código de barras. Quando o texto chega ao Cenpec, é digitalizado e o código de barra, que vai ser o único meio de identificá-lo. Com isso não é possível, vendo o texto, saber quem é o aluno, nem a que escola pertence. Além disso, enviaremos um CD com um curso que orienta a avaliação de textos para todas as secretarias municipais de educação e outro para as estaduais. Os avaliadores em cada Estado serão habilitados por esse curso. São mecanismos para deixar o processo mais transparente e acordar critérios que sejam comuns ao Brasil todo.
E neste ano também vai haver um número ainda maior de professores e estudantes participando?
Estamos aguardando 300 mil inscrições de professores e pretendemos alcançar 80 mil escolas, num universo de 131 mil escolas no país. Quanto ao número de alunos, temos uma estimativa de 9 milhões de estudantes entre o 5° ano do Ensino Fundamental e o 3° ano do Ensino Médio.
Publicado em: 18/02/2010
Autor: Luiz Henrique Gurgel
fonte:http://escrevendo.cenpec.org.br

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A poesia precisa de mais liberdade para ser o que é

Este artigo é a adaptação de uma das respostas que Ana deu às tarefas do curso de Poemas, quando se preparava para o trabalho de mediação. Foi uma maneira que encontramos de deixar registrado aqui um pouco do que ela tinha a nos ensinar.
professora Ana Maria Roriz.

Há textos e coisas que são funcionais, ou seja, têm uma função social definida: você lê um manual, uma bula ou uma receita para se orientar; você lê uma notícia para se informar; lê um artigo para conhecer a opinião de outra pessoa sobre um assunto de seu interesse e para formar a sua própria; lê um contrato para conhecer os aspectos legais de uma transação qualquer. Da mesma forma, você compra uma garrafa térmica, uma cadeira, um sapato ou um alimento com objetivos muito específicos.
Há outros textos que não são funcionais: os literários estão entre eles. Você não precisa ler textos literários para aprender, para se orientar ou para se informar. Você pode passar a sua vida inteira sem ler qualquer texto literário e ainda assim ser uma boa profissional (pense num engenheiro, por exemplo), uma boa amiga, uma boa filha. O mesmo ocorre com a arte em geral: você também pode passar a sua vida inteira sem adquirir ou apreciar um objeto de arte, como um quadro ou uma estatueta.
Entretanto, a arte - e o texto literário especificamente - tem um outro tipo de função: uma função humanizadora. Como diz Antônio Cândido, a literatura "confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua no subconsciente e no inconsciente."
Segundo o autor, a humanização é um processo que confirma no homem aqueles traços que julgamos essenciais: "o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor". Ao consumir literatura, tornamo-nos mais compreensivos, mais sensíveis; abrimo-nos para o mundo, para a natureza, para os nossos semelhantes.
Certa vez, assistindo durante as férias ao programa Vídeo Show, na TV Globo, vi uma reportagem em que apareciam as atrizes Ana Paula Arósio e Cláudia Raia observando a gravação de uma cena, nos bastidores do estúdio. Na cena, uma mulher segurava um bebê, embalando-o enquanto andava de um lado para o outro. Nesse momento, o bebê morria. A reportagem mostrou as duas atrizes aos prantos! É claro que elas sabiam que aquilo era uma gravação, mas, ainda assim, emocionaram-se a ponto de chorar! O choro foi causado pela capacidade e pela sensibilidade de elas se colocarem no lugar do outro e repartir com ele a sua dor. Mesmo que nenhuma das duas tenha vivido a dor de perder um filho, um amigo ou um parente pequeno, o ser humano é capaz de se transportar para o lugar do outro e sentir o que ele sente. Assim faz conosco o texto literário. Ao lê-lo, somos tocados em nossa sensibilidade. Por meio dele, rimos, choramos, torcemos, decepcionamo-nos, indignamo-nos. Vivemos situações "na pele do outro", do personagem; aprendemos a nos colocar no lugar do outro e a sentir as mesmas emoções que ele sente. A partir do texto literário, podemos refletir sobre ideias, situações, pontos de vista, posturas, ações, sem falar de ninguém especificamente, mas do ser humano no geral, usando a nossa forma única de ler, de compreender, de pensar. Podemos aprender outras formas de ver o mundo e as coisas do mundo e, assim, nos tornarmos mais tolerantes, mais flexíveis, menos "duros" em nossos julgamentos e em nossas ações.
Já reparou quantas vezes, ao vermos um filme, um capítulo de novela, ou ao lermos um livro ou um texto, pensamos: esse personagem é igual / age igual / pensa igual ao fulano ou ao beltrano? A literatura é o olhar do escritor sobre a realidade. É uma interpretação. É a realidade filtrada pela sensibilidade do autor. Por isso é inovadora, por isso revoluciona, por isso nos convida a renovar nossos conceitos, nossa maneira de pensar e de agir. Por isso tem função humanizadora!
Os poemas devem ser ensinados porque, como textos literários que são, ajudam a humanizar os nossos alunos. E, pensando bem, precisamos demais de humanizar as pessoas, não é mesmo? E também porque as crianças e os poemas têm tudo a ver! Em ambos abundam a fantasia, a sensibilidade, a capacidade de criar imagens, de usar as palavras sem censura, criando significados surpreendentes para elas, mostrando um lado da realidade que não havíamos percebido, apesar da experiência. Quando conversamos com uma criança, ela nos revela um olhar sempre renovado para o mundo:
Língua de criança é a imagem
da língua primitiva.
Na criança fala o índio, a árvore, o vento.
Os nomes são desnomes.
(Poeminhas pescados numa fala de João - Manoel de Barros).
No suplemento Folhinha, do jornal Folha de São.Paulo do dia 12 de maio de 2007, foi publicada uma reportagem cujo título é "Conversas para colecionar". Veja algumas falas de crianças que aparecem na reportagem:
Casal rosa
Outro dia, a mãe comentava com a filha, Alice, uma história ocorrida entre uma colega e a namorada dela. A Alice estranhou:
- Ué, namorada? Ela não é menina?
A mãe explicou:
- É, mas tem meninas que preferem namorar outras meninas. A Elisa namora a Mirna.
A menina pensou um pouquinho e decretou:
- Tem uma vantagem, né, mãe, de namorar outra menina...
- Qual?
- Elas podem pintar a casa toda de rosa!
(Conversa com Alice Sampaio Vitral, 6, e Juliana Sampaio, 36, há uns seis meses)
O carro enguiçou
A mãe ajudava o filho a se enxugar depois do banho, e ele o tempo todo fazia com a boca um barulhinho assim: "Brrrrrummm, brrrrummm, brrrrummm".
E, quando a mãe passou a toalha na boca do menino, ele reclamou: "Ah, mãe, você quebrou o meu carrinho!"
(Conversa entre José Carlos Silva Telles de Mello Junior, 14, e Marilia Tresca, 47, quando o menino tinha cinco anos)
Na época do preto-e-branco
Certa vez, a mãe contava aos filhos como eram as coisas em seu tempo. Ela explicou que, naquela época, não havia celulares, computadores, impressoras, máquinas fotográficas e televisões coloridas. Escutando tudo muito atento, um dos filhos questionou, meio chocado, se a TV e a fotografia eram em preto-e-branco mesmo. Quando a mãe confirmou, ele perguntou:
- Mas como é que eles conseguiam tirar a cor das coisas, mãe?
(Conversa entre Kauê Cruz Preto, 15, e Leda Cruz, 46, quando o menino tinha quatro anos)
A França fica no céu?
A avó de Marc mora na França, mas ele ainda não esteve lá. Na possibilidade de uma viagem até a casa da avó, o menino perguntou:
- Mamãe, a mamie Agnès [a avó" mora no céu?
- Claro que não, Marc. Ela mora na França.
- E a França fica no céu?
- Não!
- Então por que precisamos ir de avião?
(Conversa entre Marc Adrien Pinel, 4, e Kathia Gloria, 41, no ano passado)
Leia agora esse poema, de Léo Cunha (Poemas Avoados):
SAUDADE
eu pensava que à noite
o sol ia dormir
que o sol ia pra casa
que ia lá pra China
que o sol virava lua
que acabava a pilha
que punha capa preta
que a montanha engolia
que o sol também ficava
com saudade de mim.
E ainda esse, de Manoel de Barros (O Fazedor de Amanhecer):
ERAS
Antes a gente falava: faz de conta que
esse sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu
E o menino eras um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim:
Encostado na Porta da Tarde estava um
caramujo.
Estavas um caramujo - disse o menino.
Porque a Tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
Então é tudo faz de conta como antes?
Percebeu a semelhança entre os textos? Observou a liberdade de pensamento, a imensa extensão do olhar das crianças e dos poetas? Percebeu que eles olham a mesma realidade que nós, mas enxergam coisas que não enxergamos, que renovam e inovam o mundo com o seu olhar?
Na verdade, acho que a poesia não é mais explorada nas escolas porque os professores se sentem inseguros diante de um texto para o qual não há uma interpretação única. O que Manoel de Barros quis dizer com esse poema "maluco"? As crianças especulam, espiam, escarafuncham o texto por dentro, por fora, pela frente, por trás, debaixo, em cima, com grande naturalidade. Descobrem sentidos escondidos, propõem sentidos que não haviam sido cogitados, não se preocupando se ele é um ou são muitos. O professor teme não ter "a" resposta certa, segura, precisa.
Poesia não é para ser compreendida pelas vias da razão, mas da sensibilidade, da intuição. Exige um leitor que se permita mais sentir do que entender. Uma das principais características do fenômeno poético é exatamente a ambigüidade, a conotação, a amplitude de sentidos. Já deve ter acontecido com você de ouvir uma música, adorá-la, mas não saber dizer, de forma denotativa, o que você entende da letra dela. E nem por isso ela deixa de emocionar!
Outra questão importante ao lidar com a poesia é que ela não deve ser trabalhada associada a outras disciplinas, para ensinar conteúdos ou passar conceitos morais. Poesia não é texto didático, nem filosófico, nem religioso. Ela pode até dialogar com esses contextos, mas precisa de mais liberdade para ser o que é.

Fonte Boletim nº55 Comunidade Escrevendo o Futuro